O passaporte biológico
O Passaporte Biológico consiste numa estratégia inovadora no âmbito da luta contra a dopagem no desporto, que visa dissuadir os praticantes desportivos da utilização de substâncias e métodos dopantes. O Passaporte Biológico visava inicialmente combater as estratégias de dopagem para o incremento do transporte de oxigénio, mas recentemente foi implementado um novo módulo esteróidal, destinado a combater a utilização de esteroides anabolisantes. Futuramente, será implementado um terceiro módulo do Passaporte Biológico, o módulo endocrinológico, que permitirá detetar práticas de dopagem com recurso a fatores de crescimento, como por exemplo a hormona de crescimento e os fatores de crescimento insulina tipo-1.
O Passaporte Biológico foi criado pela Agência Mundial Antidopagem (AMA), tendo como base um projeto-piloto desenvolvido pela Union Cycliste Internationale (UCI).
A ADoP decidiu iniciar em 2009 a implementação do Passaporte Biológico em Portugal, implementação essa que se processa em diversas etapas:
A primeira etapa, concluída em 2009, consistiu na acreditação do Laboratório de Análises de Dopagem (LAD) para a realização de análises relativas ao perfil hematológico de cada praticante desportivo. Para isso, o LAD teve de adquirir um novo equipamento de hematologia Sysmex®, pois a Agência Mundial Antidopagem obriga a que todos os laboratórios acreditados para a realização destes procedimentos recorram ao mesmo equipamento de modo a que os resultados sejam comparáveis, independentemente do laboratório acreditado onde sejam obtidos. O LAD participa igualmente em ensaios interlaboratoriais organizados pelo Centre Suisse de Contrôle de Qualité (CSCQ), organismo suíço de controlo de qualidade contratado pela Agência Mundial Antidopagem para assegurar a fiabilidade e a comparabilidade dos resultados obtidos. No final de 2009, foi concedida ao LAD a acreditação do método relativo ao Passaporte Biológico pelo IPAC – Instituto Português de Acreditação.
A segunda etapa implicou o início da recolha de amostras de sangue a praticantes de diversas modalidades, de modo a disponibilizar à ADoP os resultados analíticos desses praticantes. Esta segunda etapa representou uma tarefa relativamente fácil para a ADoP, pois desde há alguns anos que realiza a recolha de amostras de sangue e respetivo transporte dessas amostras para vários laboratórios acreditados, no âmbito de protocolos assinados com a Agência Mundial Antidopagem, com a ANADO (Associação de Organizações Nacionais Antidopagem), com a IAAF e com a UCI. A grande maioria das recolhas de amostras realizadas a ciclistas profissionais espanhóis em Espanha no âmbito do projeto-piloto do Passaporte Biológico da UCI durante os anos 2008 e 2009, foram executadas pela ADoP. As amostras de sangue têm de ser transportadas de uma forma célere e com recurso a um sistema controlado de refrigeração das mesmas. No ano de 2010 foram recolhidas um total de 161 amostras de sangue, nas modalidades de Atletismo, Canoagem, Ciclismo e Triatlo. No futuro, e após a introdução do “Módulo Endocrinológico”, o Passaporte Biológico será implementado noutras modalidades desportivas. Em 2011 e 2012 verificou-se um aumento substancial de recolhas no âmbito do passaporte biológico, tendo sido recolhido um total de 266 amostras em 2011e 387 amostras em 2012.
A terceira etapa, implementada em 2011, visou criar uma base de dados onde estão registados os perfis hematológicos dos diversos praticantes desportivos abrangidos por esta nova estratégia, após a devida autorização pela Comissão Nacional de Proteção de Dados, de acordo com o previsto na legislação em vigor.
Autorização n.º 6625/2011 da Comissão Nacional de Proteção de Dados
A quarta etapa consistiu na criação de uma comissão de peritos, que se destina a avaliar se determinados perfis hematológicos podem ser considerados anómalos e indiciadores de eventuais violações de normas antidopagem. Esses perfis anómalos confirmados cientificamente permitem que praticantes desportivos possam eventualmente vir a ser sancionados, de acordo com o previsto no Artigo 2.2 do Código Mundial Antidopagem e na alínea c) do n.º 2 do Artigo 3.º da Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto.
O Passaporte Biológico – Perguntas e Respostas
O que é o passaporte biológico?
O princípio fundamental do passaporte biológico baseia-se na monitorização de determinados parâmetros biológicos (através de amostras de sangue e de urina) que de uma forma indireta possam revelar os efeitos da utilização de substâncias ou métodos proibidos, em oposição às estratégias tradicionais de deteção direta de substâncias ou métodos proibidos em amostras de sangue e de urina. A monitorização destes parâmetros ao longo de uma carreira desportiva tornará praticamente impossível a utilização de determinados tipos de substâncias e de métodos proibidos.
O passaporte biológico visa essencialmente a prossecução de dois objetivos: evidenciar perfis biológicos anómalos que possam determinar a existência de violações às normas antidopagem, com base no Artigo 2.2 do Código Mundial Antidopagem – Uso ou tentativa de uso de uma substância ou de um método proibido por um praticante desportivo e contribuir para a realização de uma estratégia de controlo inteligente, recorrendo aos métodos de deteção tradicionais. Um praticante desportivo que evidencie um perfil biológico anómalo pode ser submetido a controlos de dopagem dirigidos, realizados no lugar certo e no momento adequado.
Quando foi criado o Passaporte Biológico?
O conceito de Passaporte Biológico começou a ser discutido pela Agência Mundial Antidopagem a partir de 2002.
Algumas federações internacionais tinham iniciado há já alguns anos estratégias de recolha de amostras de sangue destinadas à verificação de determinados parâmetros hematológicos (a hemoglobina e o hematócrito, numa fase inicial) de modo a que os praticantes que apresentassem valores anómalos desses parâmetros fossem impedidos de participar numa competição, em alguns casos, ou que fossem submetidos a controlos de dopagem dirigidos, noutros casos.
A federação internacional pioneira nesta estratégia foi a Union Cycliste Internationale (UCI) que, a partir do final dos anos 90, iniciou uma estratégia de recolha de amostras de sangue na véspera das grandes competições internacionais, e passou a impedir os praticantes desportivos com valores anómalos de participarem nessa competição, ficando inicialmente suspensos por 15 dias e só podendo retomar a competição após demonstrarem a normalização desses valores.
Reconhecendo a grande diversidade de estratégias de monitorização de perfis hematológicos utilizadas por diversas federações internacionais, bem como a falta de harmonização dessas estratégias, a AMA decidiu organizar uma reunião com o objetivo de se obter um consenso visando essa harmonização. Essa reunião contou com a presença de representantes das federações internacionais envolvidas nesse processo (FIS, IBU, ISU, UCI e IAAF). Nessa reunião foi decidido que os resultados das análises de parâmetros hematológicos poderiam ser considerados como parte integrante do controlo de dopagem, contribuindo para a identificação de perfis hematológicos anómalos. Foi ainda decidido que a AMA deveria liderar este processo, realizando diversas reuniões em que estariam envolvidos peritos científicos no âmbito da hematologia. Sucederam-se uma série de reuniões nesse sentido, onde foram debatidos e concebidos diversos documentos técnicos visando a harmonização de procedimentos de recolha, transporte, análise e gestão de resultados relativos ao Passaporte Biológico.
Com base nos resultados destas reuniões, foi decidido pela AMA e pela UCI que seria importante implementar um projeto-piloto de implementação do Passaporte Biológico no ciclismo, de modo a poder testar-se no terreno a estratégia em causa, tendo os resultados sido muito satisfatórios. O
Comité Executivo da AMA aprovou, na sua reunião de 1 de dezembro de 2009, em que se comemorava o 10.º aniversário daquela organização, o documento denominado “WADA’s Athlete’s Biological Passport Operating Guidelines”, que entrou imediatamente em vigor.
Com a aprovação deste documento, a AMA deu luz verde a todas as organizações antidopagem a nível mundial para poderem implementar o seu Passaporte Biológico, preservando no entanto a harmonização da sua aplicação de modo a que todos os praticantes desportivos, qualquer que seja a sua nacionalidade ou o desporto praticado, sejam submetidos aos mesmos procedimentos.
Que praticantes desportivos terão um passaporte?
A nível internacional, existem uma série de federações internacionais que já há alguns anos estudavam os perfis hematológicos dos seus praticantes desportivos e que, por isso, implementaram de pronto o Passaporte Biológico, para além da UCI, que desde há dois anos tinha iniciado, de uma forma pioneira, esse processo para os ciclistas profissionais das equipas Pro-Tour.
A nível nacional, a ADoP decidiu implementar de imediato o Passaporte Biológico, iniciando a sua estratégia ao incidir principalmente sobre modalidades com uma elevada componente aeróbia, nomeadamente o Atletismo, a Canoagem, o Ciclismo, o Remo, a Natação e o Triatlo.
Que tipos de controlos serão efetuados aos praticantes desportivos no âmbito do passaporte biológico?
Neste momento, a Agência Mundial Antidopagem concebeu apenas os Módulos Hematológico e Esteróidal do Passaporte Biológico, estando atualmente em fase de conceção o terceiro módulo, que se intitulará Módulo Endocrinológico.
No módulo hematológico, são recolhidas amostras de sangue, tanto fora de competição como nos dias que antecedem determinadas competições. Pretende-se assim estabelecer um perfil hematológico do praticante desportivo, assim como valores de referência de normalidade baseados nos próprios resultados do praticante desportivo e não em valores de uma população de referência, como é tradicional.
O módulo esteróidalpermite estabelecer um perfil de determinados valores urinários do perfil de esteroides endógenos, de forma a estabelecer uma estratégia idêntica à do módulo hematológico.
O módulo endocrinológico permite detetar dopagem com fatores de crescimento, como sejam, hormona de crescimento e fatores de crescimento insulina tipo-1. A implementação do módulo endocrinológico do PB está em desenvolvimento, estando em processo de validação.
O que é um perfil hematológico?
Esta abordagem baseia-se no conceito da deteção “indireta”. Na determinação do perfil hematológico, não iremos detetar a presença de uma substância, ou o uso de um método proibido, na análise de uma amostra orgânica do praticante desportivo (sangue ou urina), mas antes os efeitos da manipulação desse perfil hematológico pelo recurso a práticas de dopagem, independentemente da substância ou método proibido que possa ter sido utilizada.
Algumas das substâncias e dos métodos proibidos que habitualmente são utilizadas pelos praticantes desportivos têm janelas de deteção muito curtas, o que dificulta a sua deteção. Quanto a determinadas substâncias e métodos proibidos, não existem ainda métodos para sua deteção direta.
Esta estratégia visa contornar estas dificuldades, uma vez que os efeitos da utilização dessas substâncias ou métodos proibidos ao nível do perfil hematológico perduram por um período muito mais prolongado. Desse modo, torna-se praticamente impossível que um praticante desportivo que utilize substâncias ou métodos visando o incremento do transporte de oxigénio não tenha uma repercussão desses comportamentos no seu perfil hematológico, conduzindo a um perfil anómalo.
Prevê-se que um perfil estabelecido com base em seis análises seja suficiente para permitir identificar uma manipulação do sangue. Em certos casos, o número de análises requeridas para detetar os efeitos da dopagem poderá até ser inferior.
Como serão analisadas as amostras recolhidas para a determinação do perfil hematológico?
Cada amostra de sangue é analisada por um laboratório acreditado pela AMA para este tipo de análises, recorrendo a uma metodologia específica e utilizando equipamento específico.
A acreditação pela AMA de um laboratório para a realização de procedimentos analíticos para o Passaporte Biológico é independente da acreditação normal para a realização de controlos de dopagem. Neste momento, só alguns dos laboratórios acreditados pela Agência Mundial Antidopagem para a realização de procedimentos analíticos relativos a controlos de dopagem estão acreditados para a realização de procedimentos analíticos relativos ao Passaporte Biológico.
Como se processa a Gestão de Resultados no âmbito do Passaporte Biológico?
As organizações antidopagem, após receberem os resultados analíticos do Passaporte Biológico de um laboratório acreditado, descodificam o número da amostra para identificar o praticante desportivo em causa e introduzem os resultados numa aplicação informática criada pelo Laboratório Antidopagem Suíço, em Lausanne, e disponibilizada pela Agência Mundial Antidopagem. Essa aplicação compara automaticamente os resultados da recolha em causa com outros resultados anteriormente introduzidos no sistema e referentes ao mesmo praticante, visando a construção de um perfil hematológico e o estabelecimento de valores de referência baseados nos próprios resultados desse praticante desportivo. Essa comparação automática é baseada num método estatístico denominado “Bayesian“, que com um intervalo de confiança de 99,9%, determina a existência de um eventual perfil anómalo. Este intervalo de confiança é o mesmo a que recorre na medicina forense para a determinação da paternidade através do perfil de ADN, havendo por isso substancial jurisprudência, a nível de diversos tribunais, que aceitaram esta mínima margem de erro.
Em cada organização antidopagem existe uma Unidade de Gestão do Passaporte Biológico (UGPB), que regularmente analisa os perfis já estabelecidos para os diversos praticantes desportivos de forma a poder planear controlos de dopagem inteligentes, a detetar perfis anómalos que terão de ser enviados para o painel de peritos ou a concluir pela existência de perfis normais.
O perfil hematológico pode ser utilizado para fins disciplinares?
Sim, o perfil hematológico constitui um novo meio para identificar os praticantes desportivos que recorrem à manipulação sanguínea para melhorarem o seu rendimento desportivo de forma ilícita. A determinação de um perfil anómalo através da aplicação informática disponibilizada pela Agência Mundial Antidopagem para a interpretação dos resultados do perfil hematológico não origina automaticamente uma evidência de violação de uma norma antidopagem.
Qualquer perfil anómalo determinado pela aplicação informática terá de ser analisado e discutido no seio de um painel de peritos, que cada organização antidopagem deve dispor para esse efeito.
Esse painel de peritos leva em consideração não só se todos os procedimentos de recolha, transporte, análise e gestão de resultados estão conformes com os respetivos documentos técnicos da Agência Mundial Antidopagem, mas também se esse perfil anómalo não poderá ser eventualmente justificado por qualquer condição patológica ou fisiológica a que o praticante desportivo tenha estado sujeito. Nesta fase, o painel de peritos desconhece a identidade do praticante em causa.
No momento da recolha das amostras, o praticante desportivo preenche um pequeno questionário onde indica se realizou transfusões sanguíneas, se teve perdas de sangue fruto de uma hemorragia, se esteve exposto a situações de hipoxia motivadas por estadias em altitude ou pela permanência em tendas ou outras instalações causadoras de hipoxia que possam eventualmente justificar esse perfil anómalo.
Caso o painel de peritos, composto por 3 elementos, considere unanimemente em relação a um determinado perfil, e com base na informação fornecida pelo passaporte biológico, que é muito provável que o praticante desportivo tenha utilizado uma substância ou método proibido e que é muito improvável que o resultado seja proveniente de uma outra causa que não aquela, enviará esse seu parecer à organização antidopagem, que procede às seguintes diligências:
1. Comunicar ao praticante desportivo e à AMA que a ADoP está a considerar instruir um processo disciplinar contra esse praticante, por violação de uma norma de antidopagem;
2. Fornecer ao praticante desportivo e à AMA a Documentação de Suporte do Passaporte Biológico;
3. Convidar o praticante desportivo a fornecer a sua própria explicação, em tempo útil, quanto aos dados fornecidos à ADoP.
Após receção das eventuais explicações fornecidas pelo praticante desportivo, a organização antidopagem remete essas explicações para o painel de peritos, que analisará os fundamentos das explicações fornecidas pelo praticante e elaborará o seu parecer final.
Se os peritos considerarem estar estabelecidas as provas suficientes para demonstrar a culpabilidade do praticante desportivo com um elevado grau de certeza, recomendarão à ADoP o desencadear de um processo disciplinar por violação de norma antidopagem. Esse processo será baseado na alínea c) do n.º 2 do Artigo 3.º da Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto.
Qual é a importância do sistema de localização dos praticantes desportivos no âmbito da implementação do Passaporte Biológico?
A disponibilização, de forma precisa e atualizada, da informação relativa à localização dos praticantes desportivos é fundamental para o sucesso deste programa. Controlos sem aviso prévio apenas podem ser realizados se for possível encontrar o praticante desportivo.
O passaporte biológico constitui uma viragem na estratégia de luta contra a dopagem da ADoP?
O passaporte biológico constitui um grande passo em frente. Está inserido no conjunto de esforços já desenvolvidos pela ADoP para eliminar a dopagem do desporto. A novidade deste programa antidopagem reside no facto de:
- Apelar a novos métodos científicos para deteção indireta;
- Utilizar métodos estatísticos sofisticados para a interpretação dos resultados;
- Basear-se numa sequência de análises para assegurar uma maior fiabilidade;
- Otimizar a proteção da saúde dos praticantes desportivos.
A International Ski Federation (FIS) e a Union Cycliste Internationale (UCI), federações internacionais que implementaram uma estratégia de registo hematológico dos seus principais praticantes desportivos há já alguns anos, demonstram recentemente que essa estratégia teve como resultado uma diminuição substancial dos valores de hemoglobina e de hematócrito, bem como uma normalização dos valores de reticulócitos desses praticantes desportivos.
Este facto é fundamental para a preservação da saúde dos praticantes desportivos, pois as substâncias e métodos cuja utilização se pretende desta forma dissuadir conduzem a um aumento da viscosidade sanguínea, causando um aumento da predisposição para doenças cardiovasculares.
Este novo sistema permite identificar os praticantes desportivos que utilizam métodos de dopagem sanguíneos ou esteroides endógenos, tais como a testosterona. A partir do momento em que um praticante desportivo tenha o seu passaporte biológico, será impossível não ser descoberto se recorrer à manipulação sanguínea ou à utilização de esteroides para melhorar o seu rendimento desportivo.